Essa nossa sombra
Você jura que nunca teve vontade de torcer o pescocinho de alguém? Jogar torta na cara? Falar umas verdades? Pois perdeu uma grande chance. Não desperdice agora a oportunidade de conhecer mais de perto suas emoções negativas. Acredite, pode fazer um bem danado
Tenho um amigo que é totalmente zen. Ninguém tira o moço do sério. Foi despedido por causa de uma sacanagem feita por um colega de trabalho (e ele não conseguiu balbuciar uma frase sequer em sua própria defesa), vez por outra recebe em sua casa amigos que aparecem para ficar uma semana e estendem o prazo para longos três meses e já vi gente pegar alguns bons CDs da sua estante com um cínico e deslavado depois eu devolvo sem que ele esboçasse um único gesto para impedir. Meu amigo não consegue expressar sua agressividade. Num mundo onde a maioria não tem a menor cerimônia em arreganhar os dentes e abrir seus caminhos com os cotovelos, ele tem horror em ver nele mesmo essa reação primitiva que solapa a vida dos outros mortais (ele não, ele não...). Até que um dia, na minha casa, depois de umas três ou quatro caipirinhas, meu amigo começou a despejar ódios e fúrias que provavelmente tinha guardado desde a infância. A minha mesa da cozinha, que já não é essa fortaleza, tremia a cada soco seu, por causa da prepotência de um, da falsidade do outro. Cada gozação recebida, cada injustiça passada estava registrada em sua memória. Tive a impressão de que, se o rapaz dos CDs passasse por ali, teria sua mão decepada, e o colega de trabalho, os dentes moídos. Os hóspedes inconvenientes seriam postos para fora a sopapos. Depois de socar e socar, terminou chorando pelo verdadeiro motivo de sua ira: a incapacidade de entrar em contato com as emoções negativas.
Bem, minha cozinha está longe de ser um set terapêutico, mas, ao encontrar o moço alguns dias depois, vi um sorriso em seus lábios que não estava ali antes. Ele se sentia um pouco envergonhado, sim, mas feliz. Um peso enorme havia saído de seu coração, me garantiu. Um alívio. Estava supercontente por ter descoberto que era capaz de expressar sua agressividade. Claro, ele reconhecia que ainda tinha de aprender a saber como aplicá-la na hora certa, a regular seu volume, e que isso custaria tempo e trabalho. Tinha encontrado cara a cara seu lado negro, sua sombra, de quem tinha tanto pavor (a ponto de negar sua existência). A partir daquele momento, me assegurou, tudo era uma questão de calibragem. Pode ser imaginação minha, mas a partir desse dia passei a ver muito mais cor e vida em seu rosto.
Quem, eu?!
É muito difícil mesmo mexer no caldeirão das bruxas. Ali tem asa de morcego, rabo de lagartixa, perninha de aranha. Sem contar que o cheiro da gororoba não é nada agradável. O problema é que o caldeirão das bruxas não está ali fora, está aqui dentro. A gente disfarça, tenta negar (O quê? Essa asinha de barata é minha?! Esse sapo costurado sou eu?!), mas a verdade é que nossa sopona está lá o tempo todo, cozinhando e fervendo. Muitas vezes com a tampa fechada.
E por que não mexemos no caldeirão logo de vez, já que está ali mesmo e não dá para dizer que ele não existe? Ora, porque nos pelamos de medo, ué. Vai que o caldeirão entorna? Vai que nos queimamos com seu conteú do? Vai que a gente precise encarar quem a gente realmente é? É por isso que só é aconselhável mexer no caldeirão com uma colher de pau beeem comprida. Por algum tempo, o panelão vai ter de ficar a uma distância razoável, como se não nos pertencesse. Assim, sob a luz da consciência e com um certo distanciamento, a gente consegue ver bem direitinho o que tem lá dentro. Até que chega um dia, depois de observar bastante, que a gente é capaz de dizer coisas como: Nossa, é mesmo, eu fiquei com tanta inveja dela que... Ou: Tava me mordendo de ciúmes quando... O conteúdo do caldeirão é assimilado, reconhecido e, quando possível, transformado. Assumimos nosso lado B. O inferno agora não é mais só o outro, nós também temos carteirinha de sócios beneméritos. A partir disso, a gente fi ca mais humano, mais relax. E as pedras que tínhamos reservado para atirar no próximo escorregam naturalmente da mão. A luz da consciência também deixa o caldo mais clarinho, menos malcheiroso e mais fácil de mexer. Dizia o psicanalista suíço Carl Jung que é melhor ser inteiro que ser bom. Mas, para atingir essa totalidade e alcançar essa integração, é preciso ter a disposição de dar o primeiro passo: encarar para valer o nosso lado negro da Força.
Encontro com Darth
Lembra o Darth Vader do filme Guerra nas Estrelas? Alto, imponente, capa negra esvoaçante, voz sintetizada. E o capacete. Darth Vader não seria Darth Vader sem o capacete. Com aquela máscara metálica, ninguém sabia sua identidade, quem ele era ou, pior ainda, o que ele era. Sua capacidade de espalhar terror, seu poder e seu fascínio vinham disso. E aí, no fi m do filme, quando o jovem Luke Sky walker encurrala o bicho e é retirado o capacete, a gente vê aquele vermezinho branco dentro, um homem fraco, deformado, sem voz. O mago das trevas tirava sua força do que parecia ser, alguém poderoso e invencível, não do que realmente era, uma coisinha frágil, encolhida. O homem da capa preta não passava de um tigre de papel, uma sombra que só tinha poder enquanto... sombra.
Nossas emoções negativas, como medo, ódio, raiva, ciúme, inveja, cobiça, rejeição, ansiedade, pena de si mesmo, fraqueza ou desejo de falar mal dos outros, entre outras, também são assim. Elas parecem poderosas, invencíveis, mas se a gente descobrir como elas se formaram, de onde elas vêm e como funcionam, vamos ver que não passam de uma semente minúscula que se agigantou, alimentada por nós mesmos, diz a psicóloga paulista Maria Lúcia Albuquerque, especialista em terapia familiar. Quando nos damos conta de como tudo surgiu e o que realmente se esconde atrás desse tipo de emoção, todo o castelo que construímos a partir dela desmorona. E aí, bye-bye, sombra.
O filme também nos dá outra excelente pista com relação a Darth Vader. Revela-se que ele é o pai de Luke. O jovem guerreiro lutava contra alguém que estava muito mais próximo do que ele próprio podia imaginar. Darth Vader não era uma pessoa de fora, mas de dentro, da família, do mesmo sangue. Portanto, alguém íntimo, quem sabe até bem parecido. As emoções negativas também estão associadas a nós, a nossa maneira de ver o mundo. Não dá para dizer que elas são uma coisa e nós outra. Elas nos espelham, diz Maria Lúcia.
Outra boa indicação: o ódio de Darth Vader nasceu por causa de um sentimento de rejeição, experimentado ao ser excluído pela Força. E quem, depois de um acontecimento desse porte, já não escutou aquela vozinha ressentida dizendo dentro da gente: Ah, é assim, é? Então vocês vão ver... Pois é, Vader também ouviu e foi atrás. Exagerou, é verdade. Mas dá para compreender. Ainda mais por alguém como Luke, que conhecia a rejeição bem de perto, sendo ele mesmo um enjeitado. Quando a gente compreende as razões da sombra, é possível abraçá-la, integrá-la, e ver como seus motivos geralmente são tão pequenos, tão bobos. A sombra pode ser grande, mas seus motivos são quase infantis.
O problema é que Darth Vader extrapolou. Ele poderia ter pegado a raiva do ah, é assim, é? e fundado uma versão bem mais moderna e sofisticada da Força. Ou ir para um planeta bem distante e esquecer de uma vez por todas essa história de competição, de maior e melhor, e ser feliz ao lado de uma marciana bonitona. Como diria meu amigo, faltou calibragem. É o que geralmente nos falta mesmo ao lidar com nossas emoções.
O peso da balança
Uma pergunta fundamental é: quem, ou o quê, reage dentro de nós de forma tão automática? O que detona as emoções? Quem aperta o gatilho mais rápido do Oeste?
A palavra emoção tem a mesma raiz da palavra movimento: motio, ou ação. E o que tem movimento tem vida. São as emoções que nos impulsionam à ação e que nos fazem sentir o gosto da vida. E elas fazem parte dela, tanto as chamadas emoções positivas como as negativas.
A questão é que são as emoções negativas que nos fazem mal. Elas podem ser naturais, fazer parte da gente, mas isso não impede sua ação nociva. Tanto sua expressão exagerada e contínua como a não-expressão inconsciente podem nos prejudicar. Hormônios entram em ação, órgãos são atingidos, sistemas internos, desequilibrados. E muita energia é perdida. Tudo isso por quê? Uma das respostas é porque estamos à mercê de uma estrutura psicológica reativa que nos impulsiona a agir quase sempre da mesma maneira. Isto é, segundo vários sistemas de pensamento, temos um padrão emocional predeterminado que responde quase automaticamente aos estímulos.
Os antigos gregos chamavam essa tendência reativa emocional de humores. Um tipo sanguíneo, por exemplo, normalmente reagiria exteriorizando abertamente sua raiva, seu ciúme, sua fúria. Um tipo mais bilioso (de bile, secreção do fígado) tenderia a remoer mais seus sentimentos. E um melancólico poderia sentir tristeza ou depressão.
As medicinas indiana e chinesa também se baseiam na idéia de que existem determinados padrões emocionais e energéticos que condicionam as pessoas desde o nascimento. Para os indianos, eles estão baseados em diferentes combinações de três forças: pita (fogo), vata (ar) e kapa (terra). Se uma pessoa é kapa kapa, por exemplo, vai ser calma e bonachona. Se é pita vata, elétrica e impaciente e assim por diante. Para os chineses, os fatores de infl uência que regem os diferentes tipos humanos são relacionados aos cinco elementos: madeira, fogo, terra, metal e água, balanceados de acordo com a data em que nascemos. A astrologia (tanto a ocidental como a oriental) é outra tentativa de conhecer melhor esses padrões reativos emocionais, representados pelos signos.
Na psicologia, outros fatores de influência sobre as emoções foram descobertos e pesquisados. Freud trouxe o peso do inconsciente nas respostas emocionais, Jung acrescentou a importância do inconsciente coletivo e da força dos arquétipos (foi ele também que criou a classifi cação de introvertidos e extrovertidos). Outras correntes da psicologia, como a comportamental, referem-se a padrões reativos, mas motivados pelas vivências de cada um, isto é, aprendidos a partir de nossas experiências. A moderna psiconeurobiologia também confi rma a tese dos padrões: os circuitos cerebrais tendem a se repetir na mesma confi guração se não há estímulos para sinapses (conexões entre os neurônios) diferentes. Forma-se um círculo vicioso: se usamos sempre o circuito cerebral que nos torna tristes, por exemplo, liberamos no corpo substâncias (os neuropeptídeos) relacionadas à tristeza que, por sua vez, vão estimular o mesmo caminho no cérebro que nos deixam tristes.
O ponto em comum entre todos esses sistemas é que eles apontam para a mesma direção. Só há uma maneira de ultrapassar o padrão reativo emocional: é ter mais consciência dele. E, a partir disso, experimentar a possibilidade de outras reações, já não tão automáticas e mecânicas. É assim que se pode começar a equilibrar as emoções, a dosar sua ação e a fazer nossa auto-regulagem.
Estratégias de vida
Um dos estudos mais interessantes já feitos sobre as emoções foi realizado pelo cientista austríaco Konrad Lorenz (1903-1989), ganhador do prêmio Nobel em 1973 e diretor do Instituto Max Planck, um centro de excelência em pesquisas. Konrad era especialista em comportamento animal. E viu como nossas emoções, assim como as dos animais, estão ligadas à defesa do território, ao desejo pela liderança de um grupo ou ao ímpeto de acasalamento. Elas se manifestam como estratégias eficazes de sobrevivência. Têm sua razão de ser, portanto.
A única diferença entre nós e outros animais é que podemos raciocinar sobre as emoções e, se necessário, ser capazes de redirecionar nosso comportamento a partir da nossa observação e inteligência. Um grande passo, sem dúvida. O problema é que muitas vezes a gente tropeça.
Mas foi para nos ajudar a ter mais consciência das emoções e a lidar com elas de uma forma mais inteligente que surgiram milhares de técnicas, terapias e aquele monte de livros do Daniel Goleman, o papa da inteligência emocional. Todo o arsenal das terapias orientais (massagem, acupuntura, aromaterapia, ioga, tai chi, meditação...) está aí exatamente para isso. Os consultórios de psicologia e terapias corporais também.
Um dos métodos para liberar as emoções é a biodanza, desenvolvida pelo antropólogo chileno Rolando Toro. Há todo um encaminhamento afetivo e amoroso para que a emoção seja acolhida e a pessoa se sinta amparada pelo grupo quando a manifesta, afi rma Maria Luisa Appy, uma das introdutoras da técnica no Brasil na década de 1980. Outro sistema bem completo, que engloba exercícios físicos, alimentação e meditação, é o Honno (pronuncia-se ronô), palavra japonesa que quer dizer essência original. Somos bombardeados por emoções negativas todos os dias. A maioria delas não é eliminada e envenena o subconsciente. São necessárias várias abordagens combinadas entre si, físicas, mentais, emocionais e espirituais, para poder purificá-las, diz Sohaku Bastos, formado em medicina oriental no Sri Lanka e instrutor do sistema Honno. Há até quem ajude a liberar as emoções negativas com toques (tapping) em certos pontos de acupuntura do corpo, técnica conhecida como EFT, ou Emotional Freedom Techniques (Técnicas de Liberação Emocional). Há registros de curas de fobias, medo e ansiedade com sua aplicação, que é muito simples, diz Mizuji Kajii, instrutor de EFT.
Mas, no mundo, talvez ninguém tenha se detido tanto sobre as emoções negativas e seus efeitos quantos os budistas. E há um motivo muito importante para isso (que você vai saber logo a seguir).
A perspectiva budista
É impossível chegar a esse ponto do texto sem me referir ao Dalai Lama. Poucas pessoas falam sobre as emoções negativas de uma maneira tão profunda quanto ele no mundo de hoje. E o budismo tem uma perspectva diferente da ciência tradicional. Se para a psicologia as emoções negativas são naturais e fazem parte do ser humano, para o budismo elas surgem por causa da nossa total incompreensão do que é a verdadeira realidade. Enfi m, são originadas a partir de um erro de avaliação monumental. Para essa tradição espiritual, a vida é virtual, um sonho, uma projeção da mente. Não adianta sofrer, se matar e tornarse negativo por causa dela. Não há razão para isso. Ao contrário, se você cultivar emoções positivas, como a bondade, a generosidade, a alegria, a simpatia e a compaixão, as emoções negativas vão diminuindo. O ideal budista é que elas desapareçam, diz o Dalai Lama no livro Como Lidar com Emoções Destrutivas. Quem cultiva a tolerância, por exemplo, vai ter pouco espaço para a raiva, e assim por diante. Isto é, uma emoção tende a anular a outra. E, com isso, o sonho não corre mais o risco de virar pesadelo.
Segundo o budismo, as emoções negativas nascem da ilusão do ego, que quer garantir tudo para si e morre de medo de ser exterminado pelo outro. Já o amor e a compaixão fazem parte da natureza essencial de todos os seres. Para o budismo, uma boa maneira de reduzir a insegurança do ego e aumentar o contato com essa nossa verdadeira natureza é a meditação.
Outro ponto importante: numa reunião realizada entre cientistas de renome internacional e o Dalai Lama, decidiu-se também reclassificar as emoções negativas e diferenciá-las das emoções destrutivas. O ódio, por exemplo, é uma emoção destrutiva. Nada que venha dele traz benefícios. Todos concordaram também que as emoções serão mais ou menos negativas de acordo com sua intensidade. Não se pode comparar uma invejinha básica de um modelito vestido por uma amiga com o desejo de eliminar um inimigo por causa de uma competição. Elas podem ter a mesma raiz, mas não podem ser consideradas iguais.
Mas se você, que me acompanhou até agora, ainda tem dúvidas de que é portador de um monte de emoções negativas, experimente o exercício proposto por um mestre sufi : lembre-se de olhar para dentro de si várias vezes por dia. Por exemplo, cada vez que passar por uma porta, preste atenção no seu coração. Em 90 por cento das vezes, a emoção que vai estar lá será negativa.
Historinha grega
Conta-se que um jovem pastor queria muito tornar-se discípulo de um dos grandes filósofos de Atenas, a cidade da sabedoria. Quando soube do seu intento, o fi lósofo mandou um ajudante procurá-lo para propor-lhe uma difícil tarefa: durante três anos, ele seria obrigado a não expressar suas emoções negativas. Ao fazer isso, devia olhar para o que ocorria dentro de si. Além disso, devia dar três moedas a cada pessoa que o ofendesse. Durante esse tempo, o pastor cumpriu sua tarefa: a cada inveja, a cada raiva ou angústia, fechava a boca e olhava para seu mundo interno, cada vez mais consciente do seu caldeirão. Aos poucos, aprendeu a não se identifi car com o que era dito, a conhecer melhor seus mecanismos emocionais e a rir de si mesmo. Ao mesmo tempo, não se esquecia de dar as três moedas a quem o xingasse ou o ofendesse. No fim do período, arrumou suas coisas e partiu rumo à cidade da fi losofi a. Ao passar pela entrada, um mendigo, na verdade o fi lósofo disfarçado, começou a xingálo: Idiota, pastor de cabras ignorante e pretensioso, onde pensas que vais? Esta cidade é só para quem atingiu a sabedoria, e não para alguém imprestável como tu! O jovem caiu na gargalhada e disse: Até há alguns dias eu era obrigado a pagar a quem me ofendesse. Agora que estou livre desse compromisso, que maravilha, posso receber seus xingamentos inteiramente de graça... O filósofo aprumou-se, sorriu e disse: Pode entrar, meu rapaz. Atenas é sua.
Para saber mais
Livros:
A Arte da Felicidade, Dalai Lama e Howard C. Cutler, Martins Fontes
Emoções, Osho, Cultrix
Como Lidar com Emoções Destrutivas, Daniel Goleman (org.), Campus-Elsevier
Emoções que Curam, Daniel Goleman, Rocco
Purificação Emocional, John Ruskan, Rocco
O Poder da Inteligência Emocional, Daniel Goleman, Campus-Elsevier
Fonte: Revista Vida Simples
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