ASSESSORIA DE IMPRENSA É JORNALISMO?
Atividade originariamente exercida por relações públicas [11] a assessoria de imprensa, assim como a edição de publicações jornalísticas empresariais, passou a ser executada no Brasil essencialmente por jornalistas a partir da restrição no mercado e pelo interesse das organizações em profissionais com acesso facilitado às redações.
Esse processo, entretanto, não se deu de modo tranqüilo. Houve muita discussão e até debates jurídicos sobre o assunto. Embora a profissão de relações públicas tivesse entre suas funções “divulgação jornalística interna” e “elaborar publicações de empresa...” (Gaspar, 1984, p. 86), estudos jurídicos feitos pela Associação Brasileira de Imprensa e Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo sustentam que essa é uma responsabilidade privativa dos jornalistas profissionais. Mas o assunto gera controvérsias. Teóricos de relações públicas tendem a considerar a assessoria de imprensa e as publicações empresariais como instrumentos de relações públicas, embora admitam que possam ser executadas por jornalistas.
Na década de 1980, ao mesmo tempo em que o mercado de publicações empresariais e de assessoria de imprensa é ampliado e passa a ser ocupado basicamente por jornalistas, o relações públicas vê reduzidas as possibilidades de atuação nestas áreas. Entre os motivos estão o preconceito com que era visto nas redações, porque teria dificuldades em compreender os interesses da imprensa, [12] ou o grande número de jornalistas que se viram sem mercado na grande imprensa e passaram a buscar novos tipos de trabalho em veículos alternativos e assessorias. Esta última situação fez com que muitas vezes as assessorias fossem encaradas como refúgio de profissionais que não deram certo nas redações (Valente; Nori, 1990, p. 119).
Com jornalistas nas assessorias de imprensa, além do crescimento rápido na sua importância em termos de mercado para profissionais da área, aumenta a presença e uso de relises pelas redações. [13] Lima (1994, p. 111) afirma que “muitos jornais encontrariam dificuldades para manter suas portas abertas se não pudessem contar com o material distribuído pelas assessorias de imprensa”.
Erbolato vê distorção séria nas facilidades operacionais oferecidas pelas assessorias de imprensa aos veículos de comunicação. Ele diz que no serviço público, especialmente no interior, onde os veículos de comunicação possuem grande dependência da publicidade oficial, o release vira moeda de troca. Publicado na íntegra, deixa o público “mal informado, manipulado, acreditando só em acertos por parte dos governantes...” (Erbolato, 1982, p. 122).
Kucinski (1986, p. 17) mostra que o problema também alcança esfera maior, embora dissimuladamente: “Hoje você vai cobrir um departamento do governo, alguma empresa e tem lá o jornalista para receber você. Formou-se uma promiscuidade que levou a um mascaramento da função do jornalista”.
O problema tem relação com o vínculo original da atividade de assessoria de imprensa com as relações públicas. [14] Para Chaparro, a assessoria de imprensa deveria liberar-se deste vínculo e de sua relação histórica e natural com o marketing e o lobby. "Como atividade jornalística, a assessoria de imprensa deve assumir as funções, os critérios e os valores do jornalismo - não apenas os técnicos, mas também os éticos” (Chaparro, 1989, p. 45).
Outro ângulo de discussão remete aos fundamentos da profissão. Jornalista é uma atividade essencialmente crítica, de oposição. Seu vínculo a uma proposta semelhante à promoção ainda é tema de discussões no meio acadêmico dos Estados Unidos, e mesmo nas redações. “Os editores, em geral, não fazem objeções à filiação de seus jornalistas a igrejas convencionais e outras organizações razoavelmente não controversas (escoteiros, rotarianos e semelhantes), mas podem impedir que membros da redação assumam qualquer função nessas organizações, especialmente se houver qualquer envolvimento na área de publicidade ou relações públicas” (Goodein, 1993, p. 73).
Isto também ocorre no Brasil, mas apenas com alguns dos grandes veículos de comunicação, que exigem exclusividade e tendem a pagar melhor salário por causa disto. O mais comum, entretanto, é o duplo emprego - em redações e assessorias, principalmente devido aos baixos salários pagos em jornais de pequeno e médio porte, em particular fora das grandes capitais.
O professor Pierre Fayard, da Université de Poitiers, França, [15] explica que é inimaginável no modelo europeu um jornalista profissional atuar como divulgador, porque a carta (chamada registro, no Brasil) de jornalista é dada a pessoas que vivem da atividade em veículos de comunicação e, para trabalhar nestes veículos, não podem atuar em atividades relacionadas às relações públicas.
Um exemplo do caso europeu é Portugal, onde o jornalista que passa a trabalhar em uma organização não-jornalística é obrigado a afastar-se do sindicato e, portanto, perde o direito à exercer a profissão. “No sector empresarial (público ou privado) as funções de ligação aos media são geralmente desempenhadas por pessoal integrado em ‘gabinetes de relações públicas’ ou gabinetes de ‘imagem’ ou mesmo em gabinetes de marketing. São, em geral, ‘técnicos’ ou ‘redactores’ de relações públicas com formação específica” (Deschepper, 1992, p. 28).
Num estudo em dezenas de países sobre o jornalista, a Organização Internacional do Trabalho traça um perfil da profissão e a assessoria de imprensa é tratada como atividade de relações públicas, podendo ser exercida por ex-jornalistas. Nesta visão, o profissional, ao trabalhar em uma empresa não-jornalística, passa a ser considerado como relações públicas, divulgador ou similar. Há, assim, a tendência a considerar o trabalho de divulgação jornalística como relações públicas ou propaganda.
Marques de Melo explica que existe uma fronteira entre o jornalismo e as relações públicas e a propaganda. Esta fronteira é a persuasão, que nas últimas chega a apelar para o imaginário e o inconsciente, enquanto que o jornalismo “atém-se ao real, exercendo um papel de orientação racional” (Melo, 1985, p. 9).
O uso de técnicas jornalísticas para a divulgação seria apenas uma estratégia de relações públicas ou propaganda e não jornalismo no sentido dado por Beltrão (1992, p. 67): “jornalismo é a informação de fatos correntes, devidamente interpretados e transmitidos periodicamente à sociedade, com o objetivo de difundir conhecimentos e orientar a opinião pública, no sentido de promover o bem comum”.
No Brasil, é exigido curso universitário, o que faz que o diplomado possa exercer a qualquer tempo a profissão e possa ser chamado de jornalista mesmo que não atue como tal. É profissionalmente aceito, por exemplo, trabalhar ao mesmo tempo em um veículo de comunicação e em uma assessoria de imprensa. Este duplo emprego é restringido apenas por alguns veículos. Os sindicatos tendem a ver problemas éticos apenas quando o jornalista trabalha em uma editoria que possa ter relação com o emprego de assessor.
Existe pouca discussão sobre este assunto, embora a fidelidade dos jornalistas às normas deontológicas da profissão devesse contrariar os pressupostos da sua atuação em empresas de outro ramo, que não o de veículos de comunicação de massa. Vieira afirma que o comunicador social que atua em empresas públicas deve agir como “um instrumento da sociedade”. Assim, os assessores de comunicação destas empresas não podem ser confundidos com “agentes fabricadores da imagem das empresas, instituições e seus dirigentes. Este papel, que não tem correspondência na ética da profissão, pode e deve ser rejeitado” (Vieira, 1979, p. 33).
Nucci diz ser bizarro o consenso de que assessores de imprensa sejam também considerados jornalistas. Ele aponta a diferença principal: “Jornalista representa e defende os interesses dos seus leitores. Escuta a comunidade, investiga, confronta, analisa e publica. O assessor de imprensa trabalha os interesses dos clientes” (Nucci, 1992, p. 1-3). Isto gera, em sua avaliação, uma “ação entre amigos” em que o público sai perdendo.
O artigo mereceu uma resposta no âmbito acadêmico. Cheida defende os assessores sob o argumento de que o que vale, tanto em um como em outro caso, é a verdade factual, ou seja, o jornalista “tem o compromisso ético de apreender a verdade factual, tomando-a como um bem social e ser um crítico observador da realidade” (Cheida, 1993, p. 117). Para ele, o fato de o jornalista trabalhar em uma empresa não-jornalística “não implica numa adesão a uma única versão dos fatos, mas sim na especialização dos assuntos pertinentes à instituição assessorada” (Cheida, 1993, p. 116).
Nesse aspecto, a alternativa apontada remete a Chaparro, que prega o caráter eminentemente informativo do jornalista, tanto nos aspectos técnicos como éticos. Isto, entretanto, significa deixar em segundo plano a característica de “assessor” do jornalista, que implica no aconselhamento, como técnico especializado, a seu contratante. A atividade do jornalista assessor de imprensa, em primeiro lugar, serve aos propósitos da organização e seus dirigentes, inclusive porque dela é contratado, o que torna difícil imaginar que privilegie a imprensa em detrimento da instituição.
Do ponto de vista dos jornalistas, entretanto, não há necessariamente problema em trabalhar em uma organização não-jornalística. Afinal, os veículos de comunicação de massa atendem à necessidade social de informação, se são também uma propriedade industrial e comercial como qualquer outra, tanto que seu desenvolvimento está ligado à ampliação das trocas comerciais e da publicidade.
Do ponto de vista do profissional, a relação pode ser considerada apenas como de empregado-patrão. Como avalia Moreira (1987, p. 174): “Você é jornalista em qualquer lugar. [...] Não há diferença em trabalhar para o Mesquita (Grupo ‘O Estado de S.Paulo’) ou numa assessoria como a da Volks”. Também há que se considerar o caráter de mercadoria da informação, que a torna um produto essencialmente ideológico e mercadológico, como demonstra Marcondes Filho. [16]
A compreensão da aparente contradição do jornalista, um profissional de função essencialmente crítica, atuar como consultor na área de divulgação e, inclusive criar fatos, [17] o que vai contra os princípios da atividade, pode ser obtida em Soloski (1993), que demonstra que o profissionalismo jornalístico controla o comportamento dos jornalistas a partir do estabelecimento de padrões e normas e do sistema de recompensa profissional.
Por meio da educação profissional, estágio e aprendizagem profissional, os jornalistas estabelecem a base cognitiva para a profissão, compartilhando normas aceitas por todos os integrantes da categoria. Estas normas estão acima inclusive dos interesses dos veículos de comunicação, que se vêem obrigados a estabelecer políticas editoriais para exercer um certo controle sobre seus jornalistas.
A aceitabilidade por profissionais do mercado tradicional – as redações –, de que o jornalista atue em assessorias e continue utilizando o título de jornalista, garante o direito ético de exercê-la. Isto só mudaria se houvesse um forte sentimento profissional contrário a esta especialização, ou seja, que a maioria dos profissionais considerasse reprovável esta atuação, o que não ocorre, ou ainda, que não houvesse a aceitação pública do monopólio da profissão, o que especialmente os profissionais de relações públicas não conseguiram evitar. Assim, o duplo emprego (redações e assessoria) tende a ser eticamente aceito.
O profissionalismo é que determina a legitimidade da atuação do jornalista em organizações não-jornalísticas. No Brasil, por estranho que possa parecer a profissionais de outros países, a figura do assessor de imprensa, uma função típica de relações públicas, assumir o título de jornalista é aceita, inclusive em nível acadêmico, mesmo que haja alguma incompatibilidade com o código de ética da profissão [18]. Mais do que aceita, a presença do jornalista em assessorias de imprensa foi até estimulada pelas redações no momento em que se fazia críticas à competência dos profissionais de relações públicas para exercer esta função. [19]
Os jornalistas perceberam nas assessorias um providencial mercado de trabalho a ser ocupado na ausência de vagas nas redações [20] e competiram por ele com os profissionais de relações públicas. Como os jornalistas conhecem melhor os mecanismos de funcionamento das redações e os interesses da imprensa, não foi difícil obter melhores resultados nesta atividade, o que ajudou o mercado a ficar a seu favor. A solidariedade profissional entre jornalistas de ambos os lados, neste caso um tipo de corporativismo, certamente também teve bastante influência.
A atividade dos assessores de imprensa tem seu controle feito nas redações como um filtro e nelas é que a credibilidade e competência do profissional são testadas diariamente. O assessor de imprensa tem como capital pessoal para realizar seu trabalho a técnica jornalística e seu relacionamento pessoal com as redações. [21]
Se fugir técnica ou eticamente às normas da profissão, é provável que seja evitado por profissionais destas redações e sua atuação fique comprometida. Santos e Barbi (2000), em estudo realizado junto às 14 assessorias de imprensa de Ribeirão Preto, SP, notam que “as assessorias, por pertencerem majoritariamente a jornalistas, acabam por adotar um padrão ético de atuação próprio desta profissão. E esses profissionais, embora não tenham formação adequada ao exercício de assessor, têm compromisso ético e consciência sobre a importância e o impacto da informação junto à opinião pública”.
A condição de que o assessor de imprensa somente apresenta os fatos a partir do ponto de vista da organização ou do assessorado é fato claro no jogo de relações e aceito tacitamente pelas redações, a quem cabe o papel de agir criticamente e investigar as informações recebidas. Deste ponto de vista, a prática de assessoria de imprensa pode, em muitos casos, ter uma vantagem ética, afinal produz informação assumidamente posicionada, mas necessariamente verdadeira, o que nem sempre ocorre nos veículos de comunicação de massa, que se postulam como imparciais e objetivos, mas que veiculam, em variadas circunstâncias, informações adaptadas à sua linha editorial e interesses.
O problema, assim, passaria a ser mais relacionado à falta de crítica e à acomodação do jornalista do veículo, que usa à farta material das assessorias do que propriamente da atuação do assessor de imprensa. Torna-se mais fácil ao repórter obter o release e uma declaração oficial do que investigar o assunto, o que demandaria tempo e uma equipe maior nas redações. A informação via release é sempre informação e, presume-se, verdadeira. Cabe ao veículo fazer a necessária avaliação crítica e dar a sua abordagem editorial própria, utilizando o texto como pauta ou matéria acabada.
Devido à aceitação profissional do jornalista atuar em empresas não-jornalísticas e ao fato de a legislação permitir que uma pessoa continue sendo jornalista mesmo não exercendo a profissão, é que no Brasil há jornalistas que não atuam na área e jornalistas assessores de imprensa. Se a origem desta segunda atividade é a diminuição no mercado de trabalho original – as redações e se o horizonte normativo das duas práticas é diferente, isto não chega a ser tão importante quanto o acordo e aceitação tácita de que o jornalista pode atuar em assessorias de imprensa e usar o título. Isto ocorre sem qualquer constrangimento profissional, mesmo com raras discriminações e observações como a de Chaparro que diz que a prática de dar à informação tratamento de relações públicas é, na realidade, “simulação jornalística” (Chaparro, 1990, p. 130).
Apesar de críticas como a de Chaparro, que propõe limitar o papel do jornalista a lidar com a notícia de interesse estritamente jornalístico, o que se percebe no mercado é que as assessorias de imprensa são cada vez mais utilizadas para produzir informação de modo a influenciar os diversos públicos da organização. Se os veículos de comunicação agem por meio da seleção de assuntos de seu interesse, é natural que o assessor de imprensa tente pautá-los a partir do ponto de vista de quem lhe paga.
Assim posto, a assessoria de imprensa é um instrumento estratégico fundamental, já que sua boa atuação aumenta a visibilidade pública da organização por meio dos veículos de comunicação de massa. Estes não apenas divulgam o que a organização deseja, mas agregam ao noticiário seu aval e credibilidade, mostrando aquilo em que acreditam e, num círculo vicioso, dando credibilidade à notícia que veiculam.
O cidadão, na ausência de outros mediadores sociais, vê-se compelido a crer no que lhe informa seu noticiário favorito. Este processo ocorre na dimensão apontada por Marcondes Filho (1993, p. 16): “tudo gira em torno do que se fala, do que é promovido, do que é comunicado, do que ganha a dimensão pública, do que atinge as massas”.
Por perceber isto ou mesmo instintivamente é que, cada vez mais, empresas e instituições brasileiras têm interesse em contar com jornalistas para divulgar suas atividades e interesses por meio dos meios de comunicação, expandindo o mercado para os jornalistas recém-formados ou desempregados e aumentando a renda dos mais experientes.
E quanto maior a importância do veículo de comunicação ou de determinada editoria na qual se busca presença, mais qualificado deve ser o assessor. Em veículos de comunicação de menor importância é possível obter espaço editorial mais facilmente. No contato com os grandes veículos é que a habilidade, o relacionamento, a técnica e a experiência do assessor de imprensa se tornam ainda mais fundamentais, pois a seleção é mais rigorosa. A filtragem por parte dos veículos tende a eliminar o produto não-jornalístico ou que contenha informações de má qualidade.
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